sexta-feira, 17 de julho de 2009

Auto da Lusitânia - Gil Vicente

Belzebu assistia a tudo atentamente, Todo o Mundo, rico mercador,fazendo que anda buscando alguma cousa que perdeu; e logo após, um homem, vestido como pobre.. Este se chama Ninguém e diz:

Ninguém: Tu estás a fim de que?

Todo Mundo: A fim de coisas buscar
que não consigo topar
Mas não desisto porque
O cara tem de teimar.

Ninguém: Me diz teu nome primeiro.

Todo Mundo: Eu me chamo Todo Mundo e
passo o dia e o ano inteiro atrás de
dinheiro,seja limpo ou seja imundo.

Belzebu: Vale a pena dar ciência
e anotar isto bem,por ser fato verdadeiro:
Que Ninguém tem conciência
e Todo Mundo tem dinheiro

Ninguém: E o que mais procuras,hem?

Todo Mundo: Procuro poder e glória.

Ninguém: Eu cá não vou nessa história.
Só quero virtude...Amém.

Belzebu: Mas o pai não se ilude
e traça: Livro Segundo.
Busca o poder Todo Mundo
e Ninguém busca virtude.

Ninguém: Que desejas mais,sabido?

Todo Mundo: Minha ação elogiada
Em todo e qualquer sentido.

Ninguém: Prefiro ser repreendido
quando der uma mancada.

Belzebu: Aqui deixo por escrito
o que querem,lado a lado:
Todo Mundo ser louvado
e Ninguém levar um pito.

Ninguém: E que mais,amigo meu?

Todo Mundo: Mais a vida, A vida olé!

Ninguém: A vida? não sei o que é,
A morte,conheço eu.

Belzebu: Esta agora é muito forte
e guardo para ser lida:
Todo Mundo busca a vida
e Ninguém conhece a morte.

Todo Mundo: Também quero o Paraíso,
mas sem ter que me chatear.

Ninguém: E eu, suando pra pagar
minha falta de juízo!

Belzebu: Pra que sirva de aviso,
mais uma transa se esvreve:
Todo Mundo quer Paraíso
e Ninguém paga o que deve.

Todo Mundo: Eu sou vidrado em tapear,
e mentir nasceu comigo.

Ninguém: A verdade eu sempre digo
sem nunca chantagear.

Belzebu: Boto anúncio na cidade,
deste troço curioso:
Todo Mundo é mentiroso
e Ninguém fala a verdade.

Ninguém: Que mais,bicho?

Todo Mundo: Bajular.

Ninguém: Eu cá não jogo confete.

Belzebu: Três mais quatro igual a sete.
O programa sai do ar.
Lero lero lero lero,
curro paco paco paco.
Todo Mundo é puxa saco
e Ninguém quer ser sincero...


Trecho de Auto da Lusitânia de Gil Vicente, adaptado por Carlos Drummond de Andrade.

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